Conteúdo | DEUS, EU E VOCÊ

DEUS, EU & VOCÊ

Um dia...

Um dia pensando em você eu comecei a sentir saudades. Um aperto muito forte no coração. Foi o bastante para que eu perdesse minha própria razão. Então eu chorei, chorei e pensei. Dei asas aos pensamentos. Libertei todo o espírito da carne e voei alto. Deixei-me de todas as garras dogmáticas e negativíticas que me prende a esse mundo cão. Joguei para longe todas as crenças e temores que me separam de tudo, e você além das estrelas, você além dos astros, além do mundo, além do universo, você além do princípio e do fim e vi Deus em todo o seu esplendor. Falei com Deus. Pedi a Deus... Deixa-me ser o sol?

E ele me fez sol. Eu fui sol e brilhei no ponto do universo, no discípulo dos sistemas. Iluminei a terra e fiz nascer o dia e vi você. Brilhei pra você e toquei você, não como eu quis mais como eu pudi. Queimei tua pele, corei teu rosto, te vi através da janela, nas frestas, nos caminhos eu te adorei e você me adorou. Ai veio à noite e a terra girou, e eu te perdi e não mais te vi. Você se foi e eu chorei.

Voltei a Deus. Falei com Deus. Pedi a Deus: Deixa-me ser a lua?

E ele me fez lua. Eu fui lua e ele me deu a noite. Eu fui noite e lua. Fui dona e senhora da noite e brilhei no céu e te vi. Eu te segui, te toquei não como eu quis, mais como eu pude. Iluminei você, sorri para você e tornei mais bela pra você, pra ver em teu rosto o branco de tua pele íntima. Iluminei teus sonhos, eu te adorei e ai veio o dia e a terra girou novamente, eu te perdi e não mais te vi. Você se foi e eu chorei...

Tornei ir a Deus. E falei com Deus. Pedi a Deus: Deixa-me ser a terra?

E ele me fez terra. Eu fui a terra, vivi sobre o sol, sobre a lua e me vesti de relva, me perfumei com flores, me enfeitei com rios, lagos e montes pra te agradar e você se agradou. Deixei ser tocado por você, não como eu quis mais como pudi.

Você pisou a relva que me vestia. Você cheirou as flores todos os dias. Você bebeu de minha água, se nutriu de meus frutos, admirou meus rios e lagos, subiu meus montes e me amou e me sorriu, me adorou e me curtiu.

E ai, veio o homem e sentiu ciúmes e me invejou.

Depredou e poluiu meus rios e lagos.

Rasgou minha relva e derrubou meus montes.

Murchou minhas flores.

E você não mais sorriu e não mais me curtiu.

Você calçou teus pés, andou sobre o asfalto e calçadas e eu te perdi e não mais te vi.

Você se foi e eu chorei...

Voltei novamente a Deus e vi Deus. Falei com Deus. Pedi a Deus: Deixa-me ser o sangue dela?

E ele me fez sangue, me tornei vida e flui, te alisei, corri por todo o teu corpo, percorri todos os caminhos dentro de você e te dei cor, te tornei saudável.

Você me sentiu dentro de você. Te toquei de todas as formas, não como eu quis, mais como eu pudi. Você me sentiu e eu me habituei no íntimo de tuas entranhas e te fui vital. Você me adorou e me curtiu, teve medo, muito medo de me perder. E quando me via sair de dentro você, chorava, reclamava e não gostava e ai, veio o dia.

O Dia que você se agitou e me agitou. Me fez correr mais rápido dentro de você. Eu corri e passei como um raio pelo teu coração e ele palpitou, bateu mais rápido e mais forte e se descontrolou completamente.

Você me expulsou de teu corpo, me expulsou de tuas mãos.

Você gelou. Você suou. Você perdeu o domínio sobre si e sobre mim.

Você amou. Você amou e eu me perdi e me gelei e me acabei.

Você sorriu para o amor que não era eu. Você se deu a esse amor e viveu por esse amor e com esse amor e finalmente eu te perdi. Não mais te vi. Você se foi e eu chorei...

Uma vez mais, tornei ir a Deus e vi Deus. Pedi a Deus: Deixa-me ser aquele? Deixa-me ser aquele por quem ela chora e pra quem ela sorrir? Me deixa ser aquele por quem ela adora como um ídolo, venera como um Deus e acaricia como uma criança?

Deus me disse ”NÃO”!

Eu não entendi e chorei, protestei e me indaguei.

Então Deus me disse: serás homem sim, mais não serás o que no coração dela se fez morada. Ele é o que veio antes de ti, o que há de ficar.

Tu, porém, á amará mais não a terás,

Buscarás mais não a encontrará,

Venerarás mais não a tocarás,

Terás outra mulher, terás filhos com ela e terás família.

Mas ela, ela a quem tu verdadeiramente amas, essa não a terás.

Esse será teu julgo. Esse será teu castigo perpétuo que te é dado por mim.

Pra teu consolo, tu, porém terás domínio sobre as palavras e as dominarás, brincarás com elas e as sobre julgarás a serviço de seu próprio raciocínio e comporás com elas e versejarás com elas e farás grandes obras com elas.

Esse será o teu consolo que te é dado por mim.

Este te dou, que sempre que a saudade te bater as portas do teu coração e começas a perder a tua própria razão, escreverás e te aliviarás e te dominarás.

Voltei desesperadamente a Deus e vi Deus. Falei com Deus e pedi perdão a Deus.

E ele me fez homem.

Eu sou homem e vivo sobre o sol, sobre a lua, sobre a terra e tenho também sangue nas veias.

Comecei a pensar em você novamente...

Comecei a sentir o aperto no coração...

Comecei a sentir saudades e a perder minha própria razão...

Estou escrevendo, estou me dominando, estou me aliviando....

 

Paulo Vieira

1986 - Good Time - Rádio 98 FM